Paulo Navarro | segunda, 17 de abril de 2023
Entrevista com o cineasta Helvécio Ratton. Foto: Bianca Aun
Flor do Lodo
Sobre nenhuma hipótese, maquine sobre o seu próprio erro, nem se torture recriminando-se. Dar voltas no lodo não é a melhor maneira de se limpar. (Aldous Huxley). Fuja à maledicência. O lodo agitado atinge a quem o revolve. (Chico Xavier). Uma gota do mal, uma simples suspeita, transforma o leite da bondade no lodo da infâmia. (William Shakespeare). A vida é um escárnio sem sentido. Comédia infame que ensanguenta o lodo. (Álvares de Azevedo). A inocência tem na alma uma pérola, e as pérolas não se dissolvem no lodo. (Victor Hugo). Com tantos “elogios”, de tantos mestres, o lodo “não é nenhuma Brastemp”. Mas o cineasta Helvécio Ratton, ao mergulhar no estranho e sombrio mundo do escritor Murilo Rubião, promete acabar com esta fama. Ou não. Em seu novo filme, “O Lodo”, atualmente nos cinemas, “esta sujeira que desce da chuva para caluniar e ofuscar o brilho inconfundível do topázio” ganha status de alma. Pelo menos de uma parte dela, aquela que “carregamos dentro de nós e tratamos de soterrar. Mas que um dia pode retornar e virar a vida da gente de pernas pro ar”. Bom suspense, humor e horror a todos.
Helvécio, por que “O Lodo”?
“O Lodo” é uma adaptação do conto homônimo de Murilo Rubião, o título do filme veio do conto. E tem tudo a ver com a história, que é surpreendente e muito original. O lodo do título tem a ver com aquilo que carregamos dentro de nós e tratamos de soterrar, mas que um dia pode retornar e virar a vida da gente de pernas pro ar, como acontece com o protagonista de “O Lodo”.
“O Lodo” também tem o estilo “absurdo” do conto de Murilo Rubião, que originou o filme?
Com certeza, o absurdo está presente no filme e a fronteira entre absurdo e realidade em “O Lodo” é tênue, quase inexistente. O absurdo nos permite ver a realidade sob outro ângulo e descobrir muitas coisas que não conseguimos perceber no dia a dia. O absurdo é revelador!
O que tem de “gótico e kafkiano”?
O escritor Murilo Rubião coloca o absurdo com naturalidade na vida dos personagens, ao estilo de Kafka. E isso sempre me atraiu muito na obra dele, que é precursora do realismo mágico latinoamericano. O clima gótico de “O Lodo” vem dos cenários e da paleta de cores que adotamos e que nos pareceu a mais adequada para contar essa história.
O elenco do Grupo Galpão, que é teatro, se adaptou bem à linguagem cinematográfica?
Se adaptou muito bem. Além de vários atores do Galpão já terem feito cinema e TV, trabalhamos muito antes das filmagens para encontrar o tom certo de interpretação. Estou muito contente com o resultado, não só com o trabalho dos atores do Galpão, como também com os ótimos atores que não são do grupo e estão muito bem no filme.
O mundo e a vida ficaram mais absurdos depois da pandemia?
Esse período estranho que atravessamos recentemente, quando ficamos em isolamento, desconfiando de tudo e de todos, marcou nossas vidas e mudou muito nossos hábitos. As pessoas deixaram de ir ao cinema, por exemplo, e somente agora estão voltando. A vida voltou ao normal, mas as marcas ficaram e algumas situações ainda nos deixam inseguros. É como em “O Lodo”, tudo parece normal, mas de repente surge o absurdo e nos desconcerta, nos leva para outro lugar.
“Sonho e realidade”, matéria prima do filme, não é a receita do próprio cinema, ou mais longe, da própria arte?
É verdade, o cinema sempre esteve ligado aos sonhos, assim como as artes em geral, mas o nível de fantasia de um filme depende de sua proposta. Muitos filmes buscam cada vez mais se aproximarem da realidade, enquanto outros, ao contrário, mergulham na fantasia. “O Lodo” trafega entre estes dois mundos que existem em nossas mentes, e nos convida a penetrar no inconsciente do protagonista da história.
A fotografia do mestre Lauro Escorel aumentou o lodo? E a música?
A fotografia de “O Lodo” é mais um trabalho brilhante do Lauro, parceiro de outros filmes e com quem tenho muita afinidade artística e pessoal. Definimos juntos os enquadramentos, os movimentos de câmera e a luz do filme, um trabalho de muita qualidade. Sobre a música, foi muito bom contar com o talento do Paulo Santos, que foi do grupo Uakti. Paulinho soube acentuar com sua música a estranheza da história e conduzir a emoção do espectador.
Procurando bem, todo psiquiatra encontraria lodo dentro de nós?
Acho que sim, o lodo é uma metáfora sobre algo que recalcamos, tratamos de esquecer e que acaba nos fazendo mal. “O Lodo” traz no centro de sua narrativa a relação entre analista e paciente, com uma crítica bem humorada e inteligente à psicanálise.
O filme acaba de estrear, qual foi a repercussão? Está sendo bem divulgado, recebido e distribuído?
A repercussão tem sido muito boa, com críticas e comentários positivos, mostrando que o filme diverte e faz pensar, o que sempre foi meu objetivo. Estamos fazendo uma campanha de divulgação que procura utilizar bem os recursos existentes, com boas ideias criadas pela agência Lápis Raro para motivar as pessoas a assistirem o filme. A distribuição é da Cineart Filmes, ligada à rede de cinemas com o mesmo nome, e o filme está sendo exibido em várias capitais do Brasil. Gostaria de convidar seus leitores a assistirem “O Lodo” nos cinemas, que ainda é a melhor forma de curtir um bom filme.