Paulo Navarro | Entrevista com Charles Valadares


Entrevista com o artista e dramaturgo  Charles Valadares. Foto: Kawane Gomes

O que não Invento é Falso

O artista e dramaturgo mineiro, Charles Valadares, leva, aos 13 Centros de Referências da Assistência Social - CRAS, de Belo Horizonte, seu espetáculo “João-de-Barros”. CRAS são o contrário de “Crash”. Ou não? São equipamentos públicos em regiões periféricas. As apresentações acontecem até dia 19, com entrada gratuita. “João-de-Barros” traz as mágicas magias do poeta Manoel de Barros (1916-2014) brincando com as memórias de infância de Valadares. Boa mistura, bom drinque! E sem álcool ou moderação, serve crianças, adultos e idosos, com algodão doce e afeto. Um belo resumo da bela fábula? Um menino inventa o mar no quintal de sua casa, navega por ele e descobre uma terra governada por um rei opressor. A partir de sua viagem imaginativa, o menino muda o curso da história desse povo.

Brincadeira séria, né? Séria porque “para a criança, o brincar é cheio de sentidos e significados”. Afinal, “quando a gente era obrigado a ser feliz”; canta e brinca Chico Buarque que acaba de fazer 80 aninhos: “Não, não fuja não, finja que agora eu era o seu brinquedo, o seu pião, o seu bicho preferido. Vem, me dê a mão, a gente agora já não tinha medo, no tempo da maldade, acho que a gente nem tinha nascido”. Boa leitura e completem: a gente era feliz e...

Charles, apresente-se, resumidamente, se possível, ao honorável público do jornal O TEMPO, por favor.

Artista de teatro, professor e gestor cultural. Nasci em Raposos, onde passei infância e juventude. Aos 18 anos, mudei para a capital mineira para cursar Teatro na UFMG. Lá também, o mestrado e o doutorado em Artes, sob a orientação da Dra. Marina Marcondes Machado, com quem estabeleci uma frutífera parceria intelectual e de amizade. Hoje, coordeno um centro cultural em Raposos, a Casa de Gentil – Culturas e Convívios, atividades culturais e educativas para crianças e adolescentes.

Agora, um pouco do espetáculo, “João de Barros”.

Um espetáculo teatral de 15 minutos que nasceu no festival “A-mostra.lab”. Gestei essa ideia, pensando na brincadeira do faz de conta e no teatro; comum à experiência infantil e muito próxima do fazer teatral. Atravessava também a obra do poeta Manoel de Barros, que despertou memórias profundas da infância. Fora a conexão como professor de teatro para crianças, desde a UFMG. No ano seguinte, transformei o trabalho em um espetáculo, que estreou em outro festival, o “BHinSOLOS”.

É para crianças de 8 a 80 anos?

Idades distintas, de crianças até pessoas idosas. A circulação pelos CRAS comprova a tese de variados públicos. O trabalho dialoga com a infância que habita cada um de nós, seja por meio da nossa infância ou observando outras do nosso convívio.

Ele poderia chamar-se “Charles de Barros”?

Poderia! No mestrado, voltei o olhar para o espetáculo “João-de-Barros”, meu material de estudo. Pude lançar um olhar renovado e crítico sobre meu trabalho e compreendi que o João não era um personagem distante. Assim, nomeei o menino de “João-Charles”. Uma virada elaborada durante a pesquisa, ao perceber que eu sou o “João-de-Barros”. Menino, minha mãe me presenteou com uma concha que ela guardou da primeira vez que viu o mar. É um dos pontos de partida do trabalho, além de diversas referências que conectam à infância que vivi entre os anos de 1990 e 2000.

Para quem incrivelmente não conhece Manoel de Barros, quem é ele?

Um poeta brasileiro, falecido em 2014, com quase 100 anos. Vencedor de dois prêmios Jabuti. Sua poesia é um elogio à infância: a que ele viveu, a de seus filhos e a que inventou, pois, como diz o poeta, “tudo que não invento é falso”. Sua escrita provoca sensações, aguça a imaginação e desloca o pensamento.  Uma criança que lança seu olhar renovado ao mundo, descobrindo a vida. Ao ler Manoel, me sinto assim.

Ele é famoso pelos versos curtos, simples e mágicos. Qual o seu favorito?

Um trecho é parte desse trabalho: “A gente nasce, cresce, envelhece e morre. Pra não morrer é só amarrar o tempo no poste. Eis a ciência da poesia: amarrar o tempo no poste”. Está em uma entrevista à revista “Caros Amigos”, de 2008, uma raridade para Manoel, que se considerava um “bicho do mato”. A partir disso comecei a pensar em como seria, no campo cênico, amarrar o tempo no poste. Para fazer isso, fiz teatro!

Fábulas e imaginação podem mudar o curso da história?

Imaginar outros mundos, outros modos de vida, histórias e caminhos é uma ação política, principalmente com cada vez menos espaço para invenção, ócio criativo e ficcionalidade. Defendo a imaginação. Precisamos cada vez mais nutrir nosso imaginário com novas formas e caminhos para mudar o rumo da nossa história e da história deste mundo caduco.

Voltemos ao espetáculo. O menino é pai do homem que será. O homem é filho dos sonhos pretéritos e perspectivas do menino?

Minha dissertação, que virou livro em 2022, tem o título “Teatro é infância e memória: o menino que há no homem”. A segunda parte do título foi presente da Marina e trouxe muitos sentidos ao meu trabalho. É falar da infância que ainda habita meu corpo, meu imaginário e meu modo de ver a vida. Busco sempre fazer as pazes com esse menino. Ele me colocou rumo ao teatro. Quando me perco dele, é preciso retornar às origens, onde moram os sonhos que me fizeram caminhar. Os sonhos se transformaram; o menino permanece.

Por falar em menino artista, dramaturgo, pesquisador e professor de teatro. Brincar é trabalhar?

Brincar é experiência que deveríamos alimentar mais. Para a criança, o brincar é muito sério, cheio de sentidos e significados. Um espaço de elaboração da vida, por meio do jogo, da criação, da invenção. A vida seria menos dura se conseguíssemos, como adultos, nutrir rastros da energia do brincar.

Qual a próxima “brincadeira”?

Nutro, com dois amigos, o desejo de criar um trabalho que dialogue com outro autor que me impactou durante o doutorado, Gianni Rodari (1920-1980), italiano com uma obra primorosa dedicada à infância. Um projeto que permita ao público participar dos rumos daquilo que está sendo criado. Rodari era um defensor da criação de histórias fantásticas e via essa experiência como algo de extrema importância para a vida das crianças e dos adultos. Uma grande inspiração.