Dolce Vita | domingo, 24 de outubro de 2021
Nem cigarra, nem formiga, um colírio, Débora Maciel. Foto: Edy Fernandes
Fábula fabulosa
Com certa frequência recebemos uma das mais famosas fábulas de Esopo, “A Cigarra e a Formiga”, um clássico cheio de moral e moralismo, lições, interpretações e adaptações. Atualmente poderíamos trocar a saúva pelo gafanhoto, tão voraz quanto. Apesar de algumas referências políticas e sociais desatualizadas, vamos ao texto original, com valores para quem luta por mais Estado e prega valores progressistas.
Fábula séria
A brincadeira séria é com o que mais vocês se identificam? Com a meritocracia ou com a glamourização do oportunismo, o desrespeito à propriedade privada, a irresponsabilidade de certas mídias, os assaltos à justa riqueza, os “interesses sociais” escusos acima da justiça e a simples inveja? Vamos aos textos? Primeiro, a versão clássica.
Fábula famosa
Era uma vez uma formiga que trabalhava duro, de sol a sol, construindo sua toca e acumulando suprimentos para o inverno. A cigarra viu e pensou: “Que idiota!”. E passava o tempo dando gargalhadas, cantando e dançando. Assim passou o verão; ao chegar o frio, enquanto a formiga estava aquecida e bem alimentada, a cigarra não tinha abrigo nem comida; morreu de fome. Moral da estória: Trabalhe, seja previdente e responsável.
Fábula fabular
Agora, uma versão bem brasileira e progressista. Era uma vez uma formiga que trabalhava duro e uma cigarra que pensou: “Que imbecil!”. E passou o verão de boa e na boa. No inverno, a cigarra, tremendo de frio, armou barraca de lona na entrada da toca da formiga, convocou a imprensa e exigiu: “Por que é permitido à formiga, uma toca aquecida e boa alimentação, enquanto as cigarras estão expostas ao frio e morrendo de fome?”.
Fábula perolar
Os órgãos de imprensa tiraram fotos da cigarra trêmula de frio e faminta. As imagens dramáticas mostraram uma cigarra em deplorável condição, sentada num banquinho debaixo de uma barraca, plástico preto e, mais adiante, a formiga em seu conforto, com mesa farta e variada. Um programa popular apresentou quadro de 15 minutos, mostrando a cigarra cambaleante.
Fábula escandalosa
O povo fica perplexo e chocado com o contraste. A imprensa internacional manda uma equipe para fazer reportagens sobre a cidadania das cigarras. A notícia recebe apoio imediato dos progressistas, com a ressalva de que deve-se aumentar os impostos e direcionar os recursos a programas sociais do governo. Isso depois de retirar o suficiente para bancar todo o funcionalismo público.
Fábula surreal
Cogita-se uma Emenda Constitucional que obriga as comunidades a promoverem a integração social das cigarras. A formiga, multada por supostamente não entregar sua quota de folhas verdes ao Ministério das Folhas e não tendo como pagar todos os impostos e contribuições que foram apurados retroativamente, pede falência. A Câmara Federal instala uma comissão de inquérito para investigar a falência fraudulenta de inúmeras formigas abastadas.
Fábula brasileira
O Ministério das Folhas nomeia comissão de auditores fiscais suspeitando de que as formigas tenham desviado recursos, além de lavar folhas. A cigarra, encorajada pelos movimentos sem teto, decide invadir a toca da formiga e lá acampa. A formiga pede ajuda da polícia que informa não dispor de efetivo para atender ocorrências desta natureza e também por orientação do Secretário de Segurança que deseja evitar confronto com os “sem tocas”.
Fábula típica
A formiga entra na justiça para obter a reintegração da toca, mas é negado. O juiz invocou um novo ramo do direito, “o econômico” e sentencia que a formiga não provou a produtividade da toca. O Ministério da Reforma Agrária desapropria a toca da formiga, por não cumprir sua função social e a entrega à friorenta e desnutrida cigarra.
Fábula do vigário
O Ministério da Justiça através dos jornais, descobriu que a cigarra foi presa no passado, por promover algumas greves, assaltos e sequestros (crimes políticos), e conseguiu sua inclusão no grupo das perseguidas com direito e indenização federal e pensão vitalícia. Agora começa novamente o verão, as formigas trabalham e as cigarras cantam e dançam. Moral da estória: Não tem?”
Fábula absurda
Em outra versão, os mesmos personagens, a mesma história. O povo revoltado organiza uma marcha de apoio à cigarra, #somostodoscigarra. Questiona-se como a formiga enriqueceu às custas da cigarra. Propõe-se lei sobre a igualdade econômica com efeitos retroativos desde o verão passado. Os impostos da formiga aumentam consideravelmente e ela ainda leva uma multa por não ter prestado assistência à cigarra.
Fábula possível
Os seus impostos do INSS também sobem, de modo a serem justamente partilhados com a cigarra. A casa da formiga é penhorada por ela não ter conseguido pagar os impostos. A formiga, decepcionada, faz as malas e emigra para um país onde o seu esforço seja reconhecido e onde possa desfrutar dos frutos do seu trabalho árduo. A antiga casa da formiga é convertida numa república para cigarras que, irresponsavelmente, não param de fazer filhos para que possam viver do Bolsa Inseto.
Fábula exagerada
A casa deteriora-se por falta de cuidados. O governo é fortemente criticado pela falta de subsídios colocados à disposição da cigarra, que agora vive em condições subumanas. Um partido sugere CPI que custará milhões aos cofres públicos. A cigarra morre de cirrose ou overdose, mas no atestado de óbito está Covid-19, culpa da falta de leitos na UTI e apoio social por parte do governo, que falhou em vacinar a população e em acabar com as desigualdades sociais e a injustiça econômica.
Fábula musical
Nem migrar para as florestas a cigarra pode porque o país foi todo desmatado. A casa acaba por ser ocupada por uma família de aranhas imigrantes, traficantes de droga, que aterrorizam a vizinhança. E a oposição felicita-se por ter contribuído para promover a diversidade cultural no país. Para não dizerem que não falamos das urtigas, mais uma versão, lembrando antiga música gravada por Dóris Monteiro.
Fábula (i)moral
A composição de Walter Queiróz e César Costa Filho baseia-se na versão alternativa da mesma fábula, de Esopo, recontada por La Fontaine. Na versão original, conforme costume antigo, compor, tocar instrumentos, cantar ou, qualquer outro tipo de arte era coisa de vagabundo. O correto seria trabalhar sempre e assim, segundo a versão primeira, a formiga mereceria toda a glória. À cigarra caberia o desprezo digno de qualquer vagabundo.
Nem cigarra, nem gafanhoto, um doce, Mariana Alvarenga. Foto: Edy Fernandes
Lança Perfume
*A respeito da controvérsia gerada pela fábula, por esta e outras versões que a contestam, outro texto com outro olhar.
“A Enxada ou o Sofá”. O sofá é um lugarzinho abençoado onde podemos deitar e esticar as pernas.
Não venham com essa de que só teremos direito ao sofá se, antes, tivermos passado pela experiência da enxada.
Muita gente que jamais pegou na enxada se sente perfeitamente bem e até feliz, mantendo-se deitado no sofá, na maior parte de todos os dias.
Não venham também dizer que tais pessoas perderam o respeito próprio, a dignidade ou coisa que o valha.
Muitos são os casos de pessoas absolutamente normais, agradáveis e positivas que são adeptas do sofá.
Dirão então, em um último esforço para defender as coisas já definidas, que tais pessoas agem assim porque já têm a "vida ganha".
Outra cizânia! Podemos encontrar sobre o sofá gente muito pobre, muito feliz e de bem com a vida, especialmente porque aprendeu a se contentar com muito pouco.
Nem enxada, nem sofá, simples e completamente, Noely Cronemberger. Foto: Edy Fernandes
Ou seja, não precisa, para alcançar a felicidade, dentro de seus conceitos, de grandes quantias no banco, carros do ano, TVs de Led, celular que só falta falar, etc.
Ninguém afirma que o pessoal da enxada é obrigatoriamente feliz e resolvido como gente.
Tem também muita gente que vive da enxada por simples obrigação, laborando sem qualquer vínculo com o trabalho.
Tem também gente revoltada com sua condição humilde. Alguns até tentam buscar uma melhoria de sua posição social.
Outros se contentam com a pobreza e têm na reclamação constante sua fonte de satisfação. Podemos sim manter sobre o assunto uma discussão democrática.
Só não venham defender a posição do velho La Fontaine e sua versão capitalista/escravagista.
Por vezes, por que não, pode-se ser formiga, trabalhando e fazendo sempre as coisas por prazer e com objetivos maiores.
Isso, sem abrir mão dos momentos de cigarra, até mesmo no sofá para sonhar um pouco, ver alguma coisa aceitável na TV e, principalmente, escrever fábulas.
Então, um brinde à grande trabalhadora formiga e a tantos outros que calejam as próprias mãos no cabo da enxada.
E um brinde também especial a quem: compõe, canta, encena e nos traz alegria através de sua arte.
Ah! A canção com a marca de Dóris Monteiro, Walter Queiróz e César Costa Filho.
"Na hora que me bate o frio, que arrepio. Você me chama de amiga. Vem me cantando cigarra e eu, trabalhando: formiga”.
“Parece até que eu não ligo, é mentira é que eu não digo, que eu adoro o seu cantar. Eu tenho é medo cigarra que te falte garra se eu te faltar”.
“Por isso pego o pandeiro, pra alegrar meu coração. Que eu te agasalho no inverno, você me alegra o verão”.